EUA: foco em Dilma para acordo sobre etanol
Ainda que a alta tarifa cobrada pelos Estados Unidos para a entrada
de etanol do Brasil naquele país seja um ponto de grande divergência no
relacionamento bilateral — criando o potencial para uma guerra
comercial — esse combustível tornou-se um dos poucos pontos positivos
da agenda de Brasília e Washington, com ambos os lados ávidos por uma
parceria visando à criação de um lucrativo mercado mundial, sobre o
qual os dois (os maiores produtores do mundo) teriam controle.
A eleição de Dilma Rousseff como presidente do Brasil seria, do
ponto de vista americano, um dos fatores essenciais para garantir tal
sociedade — conforme deixa transparecer uma série de documentos
confidenciais da Embaixada dos EUA, em Brasília, revelados ao GLOBO
pelo WikiLeaks. Eles sugerem que se o vencedor fosse José Serra —
definido pela embaixada como mais esquerdista do que Lula — seria mais
difícil concretizar a parceria que, a partir de um acordo assinado
pelos presidentes George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva, está
atualmente no primeiro estágio.
Já em meados de 2006, os americanos notaram, com certa satisfação,
que quem mandava na área do etanol era a Casa Civil, sob Dilma, e não o
Itamaraty. Eles se entusiasmaram quando ela lhes confirmou,
pessoalmente, que o governo estava “extremamente interessado em
cooperação com os EUA”. A embaixada americana apressou-se, então, em
arranjar uma reunião entre a ministra e o embaixador Clifford Sobel. O
primeiro encontro foi tão bom que os diplomatas americanos trataram de
recomendar a Washington que recebesse Dilma em Washington.
“O encontro foi caloroso, carregado de dados positivos e
substantivamente denso. Acreditamos ter em Rousseff uma entusiástica e
altamente influente interlocutora sênior no governo brasileiro nesses
assuntos importantes, e pretendemos cultivar nossa relação com ela. Se
Lula vencer a reeleição, achamos ser provável que ela continue no seu
atual posto”, previu Sobel.
Os contatos com Dilma para estruturar a parceria no etanol passaram
a ser prioritários. Eles se tornaram ainda mais importantes quando, em
agosto de 2008, a embaixada percebeu que ela seria a candidata de Lula
à Presidência. Em contraposição, Serra era visto como inimigo por conta
de críticas que vinha fazendo aos EUA. “Serra declarou que o etanol dos
EUA é menos eficiente, e culpou o etanol de milho dos EUA pela inflação
mundial no preço de alimentos”, diz um dos despachos.
O registro diz, ainda, que Serra enfatizara que as políticas dos
EUA obstruiriam a existência de um mercado global para biocombustíveis
“e identificou os EUA como o país desenvolvido mais protecionista. Ele
disse que os EUA pregam, mas não praticam o livre comércio”. Segundo o
telegrama, o governo federal disse a funcionários americanos estar
“constrangido com os ataques de Serra aos EUA”, e insistiu em
esclarecer que ele não falava pelo governo.
O governo americano entendeu os ataques de Serra como uma postura
pré-eleitoral exibindo “suas credenciais como um nacionalista econômico
verde”. E o definiu como um político à esquerda de Lula: “Lula, que
chegou ao poder como um esquerdista do PT, tem demonstrado pragmatismo,
particularmente em assuntos macroeconômicos. Serra, embora líder de um
partido consideravelmente à direita do PT, é visto como alguém de
tendências esquerdistas, algumas delas sem dúvida limadas no seu
período de exílio político do Brasil durante a ditadura militar”, diz
outro telegrama. Mas aliviou: “Embora frequentemente crítico dos EUA,
Serra não é antiamericano”.
Proposta incisiva demais esbarra em cautela
Uma série de 23 telegramas enviados pela embaixada a Washington,
entre março de 2006 e agosto de 2009, mostra que, embora sócios na
empreitada, há diferenças sensíveis de enfoque entre os EUA e o Brasil.
A proposta de parceria foi feita pelo governo brasileiro, e o americano
não titubeou em aceitá-la. “O maior produtor tanto de etanol quanto de
açúcar é o fornecedor de tecnologia, infraestrutura e processos que
podem ajudar a alimentar uma revolução dos biocombustíveis. De fato, o
programa de etanol do Brasil é tão exitoso que provocou gente como Bill
Gates (dono da Microsoft) e os fundadores do Google, Sergey Brin e
Larry Page, a promover a expansão da produção de etanol nos EUA”, diz
um telegrama da embaixada, sugerindo que Washington não perdesse tempo
em aceitar o aceno de sociedade feito pelo Brasil.
Seis meses depois, os EUA enviaram ao Brasil uma delegação chefiada
por Greg Manuel, do Departamento de Estado, tendo em mãos uma não
solicitada estratégia de cooperação, que o Brasil recebeu com cautela.
O Brasil propusera uma sociedade; os EUA responderam com um pacote
pronto, demandando urgência. “Manuel disse que os governos dos EUA e do
Brasil são os gorilas do Hemisfério Ocidental e, portanto, aliados
naturais para construir o hemisfério”, diz um telegrama. E acrescenta
que Manuel, “então, exibiu os países-alvo dos EUA na região, explicando
os motivos para dividir os alvos”.
“O Brasil revelou certo grau de precaução”, diz o mesmo documento.
O governo brasileiro disse a Manuel, através do embaixador Antonio
Patriota (hoje ministro das Relações Exteriores) que seria mais fácil
trabalhar com países da América Central e do Caribe do que com
sul-americanos, pois perante estes a parceria não seria bem vista. “Ele
explicou que a miríade de atividades de integração regional
sul-americana e as resultantes sensibilidades envolvidas tornariam
extremamente difícil para o Brasil virar parceiro dos EUA na região”,
escreveu o então embaixador Clifford Sobel. O ministro Antonio Simões,
do Itamaraty, foi mais incisivo: “Como os EUA, o Brasil teria de
determinar os países nos quais estaria interessado geopoliticamente”.